domingo, 17 de junho de 2012

Conto - "Diário de Dois Pólos"

Bem, para quem não sabe, ganhei recentemente um desafio do site "Esmiuça o Livro". Consistia em escrever um conto, e o meu foi este que venho aqui mostrar-vos. Espero que gostem:)



Diário de Dois Pólos

Março de 2012

Sinto-me feliz e bem-disposta. Como o dia, lá fora, que está um sol brilhante. Não consigo estar quieta! Aliás, não quero estar quieta. Quero sair daqui, de dentro destas 4 paredes sufocantes, e falar, falar muito.
Eu sempre fui uma pessoa sociável, às vezes até demais diziam. Tirando os dias, que eram poucos, nos quais apenas queria estar sozinha fechada no meu canto, eu era uma alma rebelde.
Mas aqui não tenho ninguém com quem falar. Estou sozinha neste quarto feio. Mesmo quando saio as pessoas não falam muito comigo.
Quero sair daqui. Ou melhor, quero voar daqui, pela janela ao fundo do quarto. Sim…voar, porque eu tenho asas, não vêem? Tenho umas asas brancas lindas cheias de penas, e elas ajudam-me a voar e a viajar por lugares lindos. Mas esta janela está fechada.
Tirem-me daqui. Estou a sufocar. Doem-me as asas, elas querem-se movimentar, mas não podem, estão presas comigo neste cubículo.
Grito, berro, bato nas paredes.
Ouço passos no corredor! Lá vêm eles com aquelas drogas que, dizem, só me fazem bem. Mas eu não estou doente.
A chave na porta. Oh não, vão-me cortar as asas outra vez. Não, não quero. Tirem-me daqui, deixem-me voar.
E lá está, aquela senhora vestida de bata branca com o copinho na mão:
“Vamos lá Mariana, vamos tomar estes comprimidos e vais ver que ficas mais calma num instante”.
Que remédio, lá enfio eu aquelas pilulas horríveis garganta abaixo. Eu não me quero acalmar, só quero voar daqui para fora…

*
Renas 2


Os comprimidos já fizeram efeito. Sinto-me quase vazia. Nem bem, nem mal, sinto-me…normal. Sinto-me como me devia sentir sempre, segundo me dizem. É assim que as pessoas normais se sentem.
Chamo-me Mariana Cunha, tenho 30 anos e estou fechada neste hospital à cerca de uma semana.  A minha mãe trouxe-me para cá. Disse que me tinha encontrado em casa, completamente eufórica, com roupa muito pouco decente, a dizer que me apetecia ir sair e dançar muito. Visto que não me acalmava e as minhas filhas estavam assustadas e sem cuidados nenhuns, ela trouxe-me.
Tenho duas filhas, uma com 3 anos e outra com 5. Como pude eu não cuidar das minhas meninas, querer ir sair e deixá-las sozinhas? Agora julgo impossível.
Dizem que sou bipolar. Pareço duas pessoas e, pior, quando estou “bem” e me contam o que fiz num dos polos quase não me reconheço.
Nunca tive nada, mas dizem que houve situações que podiam ser indicativas disto mesmo.
Eu, aqui fechada, com um diagnóstico de doente mental. Nunca pensei ser possível, eu que sempre fui bem-disposta.
Os médicos dizem que se tomar a medicação toda certinha e tiver acompanhamento regular posso vir a ter uma vida quase normal, junto das minhas filhas. Mas para já, ainda não posso ter alta…estou demasiado instável.

*

Morrer! Quero morrer. Não quero ver nada nem ouvir. O mínimo barulho incomoda-me. Quero estar enfiada nesta cama horrível e chorar. Chorar os meus males. E eles são muitos. Sou uma infeliz, não tenho nada a não ser tristeza dentro de mim. Mais vale não viver assim. Já ninguém quer saber de mim. Roubaram-me as minhas filhas e trouxeram-me para aqui. Malvados.
Estas lágrimas teimam em cair. Parecem cascatas a sair dos meus olhos e não consigo pará-las. É uma dor tão grande no fundo do meu coração. Um sofrimento atroz na minha alma.
Deito-me na minha cama, como um feto, e aconchego-me. Tapo-me toda, cabeça e tudo e fico assim a chorar. Apetece-me chorar durante horas. Será que vem alguém ajudar-me? Se me levantar daqui vai ser para arranjar alguma coisa para acabar com isto de uma vez. Não quero continuar infeliz.
Se continuar assim…o que vai ser de mim?



Ni Rodrigues

11 comentários:

  1. Só posso dizer, que não foi por acaso que ganhas-te!

    até me senti angustiada com todos os sentimentos que a "Mariana" sente.

    Parabéns Ni

    bjinhos

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  2. Gostei. Muito real a tua descrição duma pessoa bipolar, eu sei porque convivi de perto com uma.
    Parabéns!!!!
    Teresa Carvalho

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  3. Obrigada queridas:D É tão bom ler os vossos comentarios:D

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  4. Lindo...
    Senti a angustia e desespero da Mariana...Parecia que estava a partilhar a sua dor!

    Muitos Parabéns, Foi um prémio bem merecido :)

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  5. Margarida,
    obrigado por permitires que possa ler este conto,
    que infelizmente ou felizmente, acaba por ser um pedaço de um dia a dia de muitas pessoas espalhadas pelo mundo fora...
    a tua simplicidade,
    mostrou como pode ser complicada por vezes a vida de alguém...
    Adorei e continua =)

    beijo
    Nuno Miguel Miranda

    http://sonhandolivremente.blogspot.com
    http://facebook.com/parvoices.de.um.sonhador

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  6. Os meus mais sinceros parabéns Ni! Parabéns por conseguires retratar aquilo que muitas vezes vemos, e ainda que com a sensibilidade que supostamente temos, vemos tão longe, muitas vezes tão friamente! Parabéns por conseguires transmitir ás pessoas o que é ser-se assim, sem culpa nenhuma, sem explicações, sem porquês. Há tantas Marianas, tantas marianas com esta vida ou outras vidas tão angustiantes. É mais do que solidão, do que uma escolha, do que que um querer, é uma vida que perde sabor e se transforma num diagnóstico clínico! Muitos Parabéns e espero sinceramente voltar a ler coisinhas tuas!!

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  7. Muitos parabéns amiga, está espectacular mesmo, sofremos com a Mariana, continua a escrever!

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  8. LINDO!!!! Senti-me mesmo tão angustiada como a própria Mariana!!

    Muito bem amiga linda!!

    Bjos
    Vera

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  9. Parabéns pelo conto e pela vitória! :) Ficamos à espera que escrevas mais :)

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