segunda-feira, 8 de setembro de 2014

[Opinião] - "Viagem ao Fim do Coração" de Ana Casaca


"Sabes o que é que mais me assusta? (...) Além do medo que sinto de esquecer o som da voz dele, apavora-me o espaço em branco que vou ter que preencher. (...) Eu sei que é estúpido e egoísta, mas sou muito novo para ficar sem pai. (...) Mas não tenho tempo para gastar com lamechices nem com medos. Tenho de seguir em frente. E é isto que sinto, porra, é mesmo isto.
(...)
Aprendeu também que a dor podia surgir de repente , sem pré-aviso, por um detalhe parvo, por uma imagem, por uma música. A dor era assim, traiçoeira, mas, felizmente, cada vez mais passageira.
(...)
Ele sabia que a saudade era a única palavra por traduzir dentro de si. Cada um sabia da sua saudade e ele sabia da sua, demasiado até, mas não falava dela por não saber dizê-la."



Este foi o primeiro livro que li da autora nacional Ana Casaca e fiquei completamente assoberbada com o poder das suas palavras e a envolvência da sua escrita.

Este livro aborda um tema cujo qual costumo ler, aliás, um tema sobre o qual gosto de ler quando é bem escrito sobre o mesmo: o cancro. Gosto particularmente de livros que abordam temas sensíveis e difíceis. Temas reais, com os quais nos podemos cruzar durante a nossa vida, seja de forma mais próxima ou por ouvirmos d'"o amigo do amigo". Histórias sobre as quais pensamos não nos acontecer a nós mas que nunca sabemos quando é que o sofrimento nos bate à porta. E quando esses temas são bem tratados, bem trabalhos e bem escritos atingem o nosso coração e a nossa alma de forma brutal...como acontece com esta leitura. 

Além do cancro, Ana Casaca, escreve neste livro sobre outros temas fortes. Fala-nos sobre coesão familiar (ou quando ela não existe), violência doméstica, abandono, maus tratos e negligência. 

Ao longo das páginas deste livro vamos conhecendo Luísa, Pedro e Tiago. Luísa, uma criança que se vê obrigada a crescer, aos 9 anos, devido à negligência dos próprios pais e cuja vida parece que a está constantemente a pôr à prova. Pedro, irmão de Luísa, tem na irmã a mãe e o pai que nunca teve. E Tiago, um jovem com a família quase perfeita que vive entre a memória do pai e o perfeccionismo, e a vontade de levar a bom porto o legado do pai e a vontade da mãe, esquecendo-se de viver a sua própria vida. 

Duas famílias tão distintas, três vidas tão complexas, e que se cruzam para que os seus dias tenham mais sentido. por um lado o amor fraterno e por outro o amor romântico, que nos move e dá alento para erguer a cabeça em mais um novo dia. 

Este é um livro que nos faz pensar desde a primeira à última página. É complexo e envolve-nos nas mais variadas emoções. Por vezes essa emoção é tão forte que quase nos salta do peito. Um livro que nos faz pensar no que o sere humano é capaz de fazer a si mesmo e aos outros, e de que forma o amor nos pode "salvar" e nos faz mover. Onde é que, na verdade, buscamos a força quando parece impossível ela existir.

"Eu não vivo a ilusão de que podemos escapar ao sofrimento, de que serei feliz todos os dias. Na maior parte deles, o universo não quer saber dos nossos anseios, sonhos, ideias de vidas perfeitas. O Universo oferece-nos realidade e cabe-nos lidar com ela. Se passarmos uma vida inteira a fugir dessas situações, passaremos uma vida inteira se termos vivido realmente.
(...)"

Inicialmente, num ritmo lento, conhecemos a infância de Luísa, Tiago e Pedro. Vivenciamos as suas agruras e as suas conquistas. Ao longo de dezenas de páginas sentimos ódio e nojo pelos pais que negligenciam os filhos, sentimos vontade de acolher aquelas crianças que, nem por um segundo podem verdadeiramente ser crianças. Sentimos o amor que, por outro lado, alguns pais têm pelos seus filhos, um amor que os acorrenta e encurrala, mas que é do mais puro e mais forte possível. E a vontade, quer de uns filhos quer de outros, de abrirem asas e voarem por si mesmos, uns apenas por vontade e outros por necessidade. 
A leitura adquire um ritmo mais rápido, quase frenético, após Luísa descobrir que sofre de um tumor raro. Atrevo-me a dizer que a leitura adquire o ritmo que o cancro leva a progredir. Entre sintomas, exames, diagnóstico, cirurgias, tratamentos, sintomas, exames, recidivas e remissões, seguimos a um ritmo alucinante os dias de Luísa, Pedro e Tiago.

"Perder-te foi a coisa mais dolorosa que me aconteceu e que ainda me acontece todos os dias. Isto de nos morrer alguém que amamos é uma batalha diária. Uns dias penso que estou bem e que tudo foi já superado e depois, num instante, que dura rigorosamente nada, escuto uma música, leio uma frase num livro e termina toda a minha paz de espírito.
Morreste e eu fiquei vivo a perdurar na tua ausência, tendo como guia apenas aquilo que recordo de ti e que sofre variações diárias."

Uma leitura que foi das leituras mais duras que tive ultimamente. Uma leitura que me tocou especialmente pelas experiências pessoais que tive até aqui. Um livro que me levou ás lágrimas e que me deixou com vontade de me encolher, em posição fetal, na minha cama e chorar até que o dia nascesse. Um livro que despoletou a maior saudade que podia sentir. E é por isso que é um bom livro, porque nos toca e nos faz sentir algo. 
Um livro baseado numa história verídica, a da Rita, mas que poderia ser a história de todas as Luísas, Pedros ou Tiagos que vagueiam por este mundo fora. 



2 comentários:

  1. Olá :)

    Tal como tu gosto de livros que abordem temas reais e que nos façam sofrer com os personagens e nos obriguem a reflectir que respostas daríamos a perguntas hipotéticas, mas passíveis de um dia se atravessarem no nosso caminho :) A temática da perda, da ausência e da eminência da morte também me atraem nos livros.

    Gostei da opinião, deixou-me curiosa o suficiente para querer ler o livro :)

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    1. Fico contente que tenha conseguido pôr por palavras realmente a essência da leitura :')

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