quarta-feira, 27 de novembro de 2013

É Nacional, É Bom... Fátima Marinho




Sobre a autora:
O que sei de mim começou a acontecer por volta dos quatro anos, quando me tornei, de uma só vez, proprietária e agricultora. Cerquei com pedras um pedaço de solo para nele experimentar o direito à propriedade privada e aos afectos dos gestos repetidos. Adoptei-o sem autorização, tal como os homens fundadores da sociedade civil que se apossaram das terras e ousaram chamá-las suas. Também assim fiz. Medi o local frontispício ao pequeno café da minha mãe e passei a cultivá-lo. Não me lembro de alguém ter reparado nesse meu acto insubordinado de emancipação latifundiária.
Todos os dias esquadrinhava os movimentos do canteiro, para aprender a força telúrica da terra. Um feijão destacou-se em altura e beleza de todas as outras sementeiras. Orientei o seu crescimento com uma estaca e ele desabrochou em flores.
Nessa altura, iniciei também estudos de biologia aplicada. Seguia o coaxar das rãs, nos regatos, para descrever a geografia dos percursos dos batráquios e recolhia cascas de árvores que dispunha por grupos de análise morfológica.
(...)
Abandonei o ofício de cientista quando comecei a frequentar a escola que sempre temi e desejei em partes iguais. Tive muitas professoras, muitos colegas e inúmeros lugares de carteira, mas o primeiro dia de aulas permanece distinto. As escadas íngremes a terminarem no portão estreito de ferro. A minha mãe a deixar-me naquele lugar vazio de rãs em regatos de água. Os meus olhos aflitos no meio do clarão da manhã de Outono. As carteiras de madeira com tampo inclinado e tinteiro para encher a caneta de aparo. O terror de me imaginar a escrever com caneta de tinta permanente e sujar o papel com respingos. A minha memória episódica, descarnada de factores circunstanciais, deve ter tido o seu berço no meu primeiro dia de aulas. Não tenho a mais pequena ideia da sala, da cara da professora, do número de colegas ou do intervalo. Mas lembro-me claramente das patas de cavalo gigantes entre as trepadeiras, do alecrim e do portão alto e estreito de ferro fundido que me impedia de fugir.
Até aos dez anos, aprendi que a mudança é o meu lugar de permanência, pelo que o tempo sagrado e consagrado tomou o leme do barco de noz em que navego. Os minutos são importantes, tanto quanto os segundos em que se dividem. É impossível voltar ao segundo em que digitei a palavra segundos. Essa voracidade das horas tornou-as bentas e em terreno santificado pelo inacessível vivo desde então.
Aos dez anos, descobri também que os adultos não eram os deuses que viviam imaculados dentro de mim. Recordo, como ponto de viragem, o dia em que percebi que a dona Luísa, uma vizinha desse tempo, mentia como se fora uma criança. A menina assustada que vivia dentro de mim deu um salto no tempo. Imaginei a dona Luísa na vida eterna com um cartaz nas costas onde, entre outras lacunas humanas, se podia ler a palavra mentirosa. Era assim que a minha mãe me descrevia a vida depois da morte. Dizia ela que todos teriam, nas costas, em letras gordas, os maiores pecados cometidos. Seria aquela humilhação o inferno da eternidade. Os santos, claro, teriam apenas registadas as virtudes. Essa visão maniqueísta e simples da vida e da sua suposta eternidade era razão suficiente para vigiar os actos, as palavras e as omissões
Na adolescência, abandonei o medo da condenação eterna e aproximei-me de Morin quando dizia que os deuses existem porque nos cavalgam. A vida não necessitava de explicações para além de si mesma. As tardes com os grupos de amigos, no rio, ou a estudar matemática completavam, sem condições metafísicas, a existência.
Foi também o tempo de ir estudar para longe de casa, inicialmente sob a supervisão das freiras de um colégio católico do qual só podia sair durante o horário lectivo. A minha mãe autorizou passeios, de carácter extraordinário, pela cidade dos Arcebispos, sob a vigilância do meu irmão, pelo que era, de entre quase todas as jovens daquele espaço monacal, a que maior uso fazia da liberdade. Por lá permaneci dois anos. Deve ter sido ali que reencontrei Deus oculto, talvez, na face da irmã que vigiava as horas de estudo, na sala enorme contígua ao claustro. Aquele colégio recebia também crianças abandonadas ou jovens de parcos recursos económicos, chamadas internas, que pagavam a sua permanência com trabalhos domésticos. As que pagavam mensalidade estavam apenas obrigadas a frequentar a sala de estudo e a cumprir as regras monásticas de tomar banho após o jantar e deitar-se às dez, quando uma das freiras vinha apagar as luzes e vigiar a ordem das camaratas. Era uma espécie de sociedade de castas.
A segunda parte da década de 80 foi incendiada pela paixão. Uma paixão recusada pelo medo de a perder. O meu mais querido amigo iria permanecer por uma década, o meu grande amor, sem que disso alguma vez lhe desse conta. Outros namorados serviam a necessidade de, por interposta pessoa, beijar uma boca impossível. "A Ponte para a Eternidade" de Richard Bach encurtou distâncias e amainou a nostalgia. Sublinhei a frase "Voltaremos sempre aos braços de quem amamos, seja a nossa separação de um dia ou de uma vida" e deixei imaculada a ternura a fechar a década de oitenta com um fado de Nelson de Barros, na voz de Cidália Moreira, cujo cabelo azeviche lhe valeu o cognome de cigana do fado: "Ai quem me dera ter outra vez vinte anos
Depois de tirar o primeiro curso que me habilitou a dar aulas a crianças do 1.º ciclo, em aldeias encravadas na serra, o Deus que, às vezes, espreitava do rosto da irmã Irene ficou maior. Quando somos confrontados com a dor de uma criança, ou de muitas, há sempre um Deus por perto para responder à inquietação que nos varre o peito de lés-a-lés. Um Deus que fica imenso e todo-poderoso quando os nossos alunos passam a ter a nossa idade mas não sabem falar, nem se alimentam sozinhos. Ou quando alguns deles, distantes do padrão convencionado de normalidade, nos dão lições de humanidade maiores que as de Erasmo de Roterdão e Luther King.
 (...)
O ano 2000 surge encimado por um acontecimento prodigioso. O nascimento do meu sobrinho mais novo com trissomia 21. Para quem nunca viveu nada parecido direi metaforicamente que é algo semelhante a ser transportado magicamente para além do círculo polar árctico e não encontrar noite para repousar da luz intensa. Mas a luz acaba por obrigar a ver quão sombrias são as nossas convicções de felicidade e bonomia.Até ao corrente ano de 2010, os dias sucederam-se entre o improvável, que nos desafia no limite da vertigem, e o milagre que nos salva para que possamos continuar a contar histórias com saldo positivo e algum capital de esperança.(...)

Ama-me Sem me Suportares:
Um livro de poesia é sempre uma ribeira brava, que a todo o momento pode galgar as margens e afogar o que nos sufoca. Nesse sentido, é também uma libertação inconsciente de arquétipos imemoriais. As palavras quando se juntam à roda de uma ideia deixam as ideias à roda até que todas caiam reconciliadas no chão. É assim que a poesia se intromete nos gestos do quotidiano e, transcendendo-os, os transfigura. Este é um livro onde os afectos servem a poesia que deles se serve para ser o que é. 



À procura de um lugar:
O nascimento do Vicente transformou tudo e todos à sua volta. Chovia no dia 25 de Abril de 2000.

Portugal parou para lembrar o valor da liberdade e, logo após o seu nascimento, também a família de Vicente parou debruçada sobre o abismo. Fora concebido numa viagem aos Alpes suíços e a sua vinda preparada com detalhe. Mas Vicente trazia consigo uma revelação esmagadora. Tinha trissomia 21. O dia do seu nascimento foi o acto inaugural de mil desafios, mas também o início de vidas maiores que se escondiam no conforto e na previsibilidade dos dias. Às vezes a felicidade veste-se de breu só para que o sol brilhe mais quando rompe a alva.

 

O Mistério das Coisas Erradas:
A crónica serve de âncora a relatos sobre a infância. Relatos fiéis cuja crueldade e, às vezes, a ternura ferem até as palavras. São memórias da infância captadas pela surpresa de quem guarda muitas crianças por dentro e à flor da pele. O quotidiano escolar serve de chão ao desafio de espreitar o mundo infinitamente sábio da meninice.

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