domingo, 18 de agosto de 2013

[À Lareira com] - João Frada



À Lareira com...João Frada, autor de "Tórrido".

Fale-nos um pouco sobre si.
É licenciado em Medicina, em Ciências Antropológicas e Etnológicas e em História, sendo ainda doutor em Medicina. Para além disso é professor. 

O que é que o conhecimento significa para si?
Inspirando-me no pensamento e na filosofia de Francis Bacon, dir-lhe-ei que o conhecimento significa para mim o mesmo que para este grande mestre da Época Moderna: “o poder”.  Não o poder na sua expressão social, económica ou política, mas na sua forma mais pura de busca e compreensão da verdade. Quanto mais se conhece, sobretudo se  os dados que compõem a nossa base cognitiva resultam  de um processo organizado e decorrente de uma aprendizagem metódica e contínua, de preferência curricular e científica, mais se pretende conhecer e, naturalmente, mais consciência se tem da infinidade de degraus da escada do conhecimento que jamais conseguiremos subir. A nossa existência é curta demais e o nosso cérebro demasiado pequeno, apesar da enorme capacidade de que dispõe, e, nessa medida, por mais que nos esforcemos, jamais passaremos dos primeiros “degraus”. Todavia,  mesmos os mais baixos, quando subidos  com paixão, firmeza,  sacrifício e persistência, são excelentes varandas panorâmicas voltadas para o conhecimento, porque é através delas que descobrimos o saber e desenvolvemos a intelectualidade. Haverá melhor poder do que o do conhecimento?     

É professor, colunista, investigador, historiador e clínico. Quando e como começou a sua aventura literária?
Considerando literatura sob o ponto de vista genérico, enquanto  “arte de escrever”, na verdade, o que escrevo, centrado predominantemente sobre matéria médica, histórica e antropológica, por razões óbvias, deve mesmo ser encarado como uma aventura, já que não sendo eu senão um simples cultor da escrita, não obstante o rigor científico com que trato cada tema, cada estudo, cada obra, falta-me a eloquência de literato no sentido mais puro do termo. Não passo, pois,  de um humilde aprendiz de humanidades e de um diletante nas áreas literárias.

Tem já mais de meia centena de títulos publicados, obras de carácter técnico-científico, histórico, etnográfico e poético. Pode referir algum dos géneros em que se sente mais “à vontade”? 
Escrever romance é e foi para mim mais do que uma ousadia. Escrever ciência tornou-se ao longo do tempo uma tarefa bem mais fácil,  sobretudo quando esse exercício se centra em áreas do conhecimento que durante o meu percurso de vida académica constituíram apostas de formação metódica  e organizada. Pratico medicina quase diariamente, desde 1978, agora só em regime privado, já que me encontro atualmente na condição de médico/professor aposentado. Os meus sentidos, a cerebração, a memória, o raciocínio,o léxico, a sensibilidade, o feeling, no seu todo, estão virados para a medicina, em particular, pediátrica. A matéria médica é, sem dúvida, o género temático que mais me fascina e que continuará, seguramente, a ser a minha primeira escolha em termos analítico-reflexivos e literários.    
           
Tem algum livro seu que tenha um sentimento especial para si, diferente dos outros? Se sim, qual?
Escrever poemas representa para toda a gente um exercício intimista, ainda que nem tudo quanto se escreve retrate intimidades ou afetos mais anímicos. Mas é a nossa alma, através da nossa voz e da nossa escrita, que se desnuda e nos descobre e identifica em cada poema, em cada frase, em cada palavra transbordante de sentimento e emoção. A coletânea de poemas, “Olhos nos Olhos da Alma”, reunindo quatro livros, três editados e esgotados (Reverso; Memorial do Mar, da Raiva e da Paixão; Corpo de Três, este em co-autoria com António Manuel Couto Viana) e um inédito (Emoções), foi, sem dúvida, a obra que, em termos sentimentais, mais significado assumiu no contexto geral de tudo o que até agora dei à estampa. O meu Eu, racional, intelectual, sensível e sensorial, está claramente retratado nesta coletânea.  

Publicou recentemente Tórrido, um livro diferente dos que já tinha publicado. O que o levou a escrever este livro?

Escrever é viciante e ainda que a arte de escrever do autor não mereça rasgados aplausos, por não conter informação de grande mérito ou por ser pouco apelativa, cativante ou ecuménica, a verdade é que há sempre leitores para todos os géneros e estilos de escrita. Dito isto, qualquer um pode aspirar a romancista e eu, sem deixar de reconhecer as minhas limitações, ousei também meter-me nessa aventura. Depois de ouvir contar várias vezes, a uma familiar minha, uma história de vida invulgar de duas pessoas, mãe e filha, senti que este curiosíssimo relato poderia perfeitamente constituir o cerne de um romance. Situada entre a realidade e a ficção, a narrativa deste livro, centrada predominantemente sobre as escaldantes controvérsias sociológico-políticas do Portugal colonial e pós-colonial, encontraria nas paixões ardentes das suas personagens e na calidez tropical de Moçambique e de Angola o ambiente e os “condimentos” propícios à sua composição. Nasceria assim o “Tórrido”.

Sendo Tórrido uma narrativa construída através de uma longa retrospectiva de memórias, podemos dizer que este livro transporta uma “grande parte de si e da sua experiência”? Como foi passar tudo isso para o papel?
Ainda que muito do que se escreve num romance sejam apenas construções ficcionistas do autor, enxertadas em memórias factuais do que vê, ouve, analisa e presencia e regista à sua volta, sem ser propriamente agente ativo em tais situações, outro tanto resulta das suas experiências pessoais. É inevitável. O que se escreve e o modo como se escreve são traços inconfundíveis da personalidade do autor, ainda que eles se apresentem camuflados e nem sempre percetíveis numa leitura superficial e menos hermenêutica. A identidade do autor, através dos seus valores, princípios, tendências,  de um modo mais ou menos vísível, está quase sempre presente nos seus escritos.   
Conheço a África  Ocidental, mas não a Oriental. Pude, contudo, conhecer um pouco de Moçambique, enquanto espaço colonial português, através dos olhos e das memórias de uma grande amiga minha, que viveu uns bons anos neste território. Para além desta valiosíssima informação, a documentação, constante em bibliografia, que investiguei sobre este local e, em particular, sobre Tete, onde decorre grande parte da narrativa, foi de especial importância para a construção deste romance. Sem deixar de dar largas ao espírito de criatividade e ficção, patente em tantas passagens do Tórrido, muito do que escrevi implicou um rigor histórico-cronológico criterioso e essa marca, ainda que não atingida na plenitude, pretendeu ser uma exigência distinta em relação a todas as realidades factuais citadas nesta obra. 

De momento, tem algum projecto em mãos? Pode falar-nos um pouco mais sobre ele?
Sim, tenho. Vários. Para além de uma reedição do “Praia de Mira: visão histórica e etnográfica”, obra esgotada e publicada em 1983, agora com um cuidadoso trabalho de revisão e atualização, integrando também mais um novo capítulo sobre demografia e epidemiologia do local, estou a preparar a edição de mais um livro, “Higiene na Marinha dos Descobrimentos”, Tomo III de A Vida a Bordo das Naus. Outro romance está já em linha também, desta vez pura ficção, e bastante adiantado, mas, por ora, permita-me manter sigilo do seu conteúdo.

Sendo professor, julga que a leitura e a escrita ainda são bastante “postas de lado” pelos jovens? Como poderíamos motivar esses mesmos futuros adultos para a leitura e para o conhecimento?
As chaves para esses objetivos têm sido mais do que objeto de reflexão para pedopsicólogos e especialmente para pedagogos. E têm havido, realmente, bons resultados em todos estes domínios, da leitura, da escrita e da exercitação e estimulação da criatividade e da prática de texto, sobretudo, nos primeiros dois ciclos escolares. A partir do terceiro ciclo, de uma maneira geral, os alunos, adolescentes, apetentes, sem dúvida, para outras áreas, como a informática e a eletrónica, parecem retroceder no capítulo da leitura e da escrita criativa. O aparente divórcio em relação a esta importante vertente de formação é perfeitamente demonstrável pelas baixas taxas de acesso a bibliotecas escolares e não escolares de jovens que se identificam com a faixa etária em causa. Lendo pouco ou apenas o essencial, não escrevendo senão de forma elementar ou escrevendo com o recurso permanente a  abreviaturas, mal sabendo manusear um dicionário de sinónimos ou de verbos, expressando-se oralmente de uma forma simplicista e elementar, situação, de resto, favorecida pelo atuais serviços de comunicação audiovisual, em particular, pela televisão, os jovens, de um modo geral, não cultivam nem a boa prática de leitura nem a escrita.
Nem toda a gente pode aspirar a ser um bom escritor, porque para isso se exigem outros atributos. Todavia, quem exercita a leitura acabará por demonstrar muito mais habilidade na expressão falada ou escrita e aumentará, seguramente, o caudal dos seus conhecimentos, fundamentais ao seu sucesso académico e profissional. De certo modo, sentir-se-á também mais feliz.

Para terminar, deixe uma mensagem aos nossos leitores, pff.
 Muito obrigada, desde já.
 Aos leitores dir-lhes-ei que a suprema satisfação da leitura é um prazer tão grande como explorar um lago idílico num barco a remos. Quem escreve não passa de um remador com maior ou menor jeito, quem lê passeia e goza a viagem, página a página. Importa, contudo, a ambos, remador e passageiro, observar atentamente cada detalhe da paisagem, fixar cada capítulo, cada pormenor, lembrar cada baía, cada ancoradouro, cada cais onde se chega, cada cais de onde se parte. Só assim valerá a pena viajar dentro de um livro e sentir esse percurso gratificante e inesquecível.

1 comentário:

  1. Adoro este homem! :) Conheço-o desde sempre, sendo o meu pediatra. Mas não sabia que também era escritor e tão pouco licenciado em Ciências Antropológicas e Etnológicas e em História! É mesmo um poço de sabedoria e só de o ouvir dá gosto. Muitas coisas se aprende com ele e agora aprenderei muito mais, com certeza.

    Obrigada, Ni, por esta partilha que tão contente me deixou.

    Beijinhos*

    ResponderEliminar